Sapiranga – Mesmo passando pelo período mais dolorido de suas vidas, uma família de Sapiranga conseguiu encontrar ressignificado na dor. O jovem Marcos Vinícius dos Santos da Cruz, de 18 anos, sofreu um grave acidente de trânsito no dia 16 de fevereiro e no dia 19 foi diagnosticada a morte cerebral. Foram dias de muita angústia, medo e fé para os pais Ionara e Marcos Cruz. “Jamais imaginei que ele fosse morrer, que eu fosse perder ele”, disse a mãe, entre lágrimas.
De sexta a domingo (17 a 19 de fevereiro), a família passou por um turbilhão de sentimentos. Da esperança pela recuperação, os pais receberam dos médicos o diagnóstico irreversível. “Logo, os médicos disseram que o estado dele era muito grave e, por isso, fariam a cirurgia em Sapiranga, pois ele não resistiria a ida para o Hospital de Pronto Socorro (de Canoas)”, lembra a mãe. Se sobrevivesse a cirurgia, Vini, como era carinhosamente chamado, teria ainda 72 horas críticas. “Na sexta, explicaram que a pressão no cérebro aumentou demais e tinha pouca atividade cerebral. Oramos muito, pedimos ajuda da igreja, família, amigos queestavam em peso na frente do hospital; tivemos esperança até o último momento”, conta mãe. Com os três exames comprovando o diagnóstico, não havia mais o que fazer. “Conseguimos nos despedir, abracei meu filho pela última vez, ele estava quentinho”.
A decisão de salvar vidas
A mãe de imediato manifestou o desejo de doar os órgãos de Vini. “Deus não ia levar meu primeiro filho em vão, tinha que ter um propósito, algo maior perante aquele sacrifício e sofrimento, se Deus segurou ele respirando até aquele momento, tinha que ter propósito. Mesmo em coma, o coração dele batida, eu sentia batendo e eu não poderia autorizar desligar os aparelhos, seria como se eu tivesse matando meu filho”, disse Ionara.
“Propósito de vida”
O procedimento para a retirada dos órgãos ocorreu durante a noite de domingo e madrugada da segunda-feira. Foram doados coração, dois rins, fígado e uma córnea. “Infelizmente, a outra córnea, não foi possível. As maiores lesões dele no rosto ocorreram porque parte do material do poste de concreto entrou no rosto dele pela viseira, se ele sobrevivesse, não enxergaria mais de um olho”, conta a mãe. Para decidir pela doação, Ionara se colocou no lugar de outros pais. “Como nós estamos chorando por nosso filho, quantos outros pais estão chorando na fila de espera por um órgão, com o filho quase morrendo? Nós não tínhamos mais o que fazer pelo Vini, mas podíamos salvar outras pessoas. Acredito que esse foi o propósito para a vida do meu filho”.
Moto comprada no mesmo dia do acidente
O dia do acidente iniciou como um dos mais felizes para Vini. Aos 18 anos, ele comemorou a compra da moto. “Busquei ela em Caxias do Sul pela manhã. Comprei no meu nome, mas ele que pagava. Como estava em processo de tirar a habilitação, o combinado era de que eu usaria até ele terminar”, conta a mãe, que ainda busca entender a atitude do filho em dirigir sem estar habilitado. “A gente viu comentários, meu filho não era assim. Ele nunca nos desrespeitava e sabia do risco de dirigir em habilitação. Ele era um ótimo menino”. A mãe relembra da maturidade do filho. “Ele trabalhava, era dedicado. Me ajudava muito em casa, todos os dias de meio-dia servia almoço e levava o irmão na escola antes de retornar ao trabalho. Ele nos ajudava com as despesas da casa, era um filho exemplar”.
“Ela que me dá forças”, diz mãe
Sem nem imaginar que o filho seria vítima de um trágico acidente, Ionara e o marido viveram meses de tensão com a gestação da terceira filha, a pequena Betina, hoje com seis meses. Ao descobrir a gravidez, que foi planejada, um diagnóstico devastador. “Ela tinha um tumor na nuca e água no pulmão. Os médicos não deram praticamente nenhuma chance de sobrevivência, provavelmente seria morte fetal. Nos apegamos muito com Deus, a cada dor, me preparava para sagramento e aborto; vivemos um luto”. Para surpresa de todos, com 20 semanas de gestação, não havia mais tumor. “Ela nasceu saudável, tem sopro no coração, mas está em tratamento. Após tudo isso, hoje o luto é com meu primogênito. E ela (Betina) que me dá forças para levantar”.
DIA HISTÓRICO PARA O HOSPITAL
A doação dos órgãos foi também um dia histórico para o Hospital Sapiranga, que realizou sua primeira captação de um coração. O procedimento (também dos demais órgãos) foi realizada por um grande grupo de profissionais. Além do Hospital Sapiranga, participaram profissionais do Hospital de Clínicas, Hospital Dom Vicente Scherer e Santa Casa, de Porto Alegre.
O diretor técnico do Hospital Sapiranga, Airton Schmitt, enaltece o gesto nobre da família. “Sabemos que é um assunto muito delicado, mas é imprescindível que ele faça parte das famílias, as pessoas precisam conversar, discutir em família e perceber que doar órgãos salva vidas. Isso é importante para que a família possa realizar o desejo do ente querido em ser um doador de órgãos. Quanto mais doações, mais vidas podem ser salvas”. O procedimento também contou com envolvimento da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes do Hospital Sapiranga (CIHDOTT).