Marcas que ficam: as sequelas de quem já se contaminou pelo novo coronavírus

Região – Amilton Gusatto, 50 anos, se infectou com a Covid-19 em junho de 2020. Como ele mesmo relata, teve uma situação muito séria e próxima de resultar em morte. “Não me hospitalizei, mas fiz o primeiro atendimento na UPA. Me deram alguns medicamentos, e recomendaram 12 dias de isolamento com a família. Mas os medicamentos não resolveram, o quadro foi se agravando mais e, na época, no início, eu não acreditava muito nisso. Marquei consulta com um especialista de pulmão, e cheguei no atendimento quase sem conseguir falar, com muita tosse, falta de ar e febre. Após a tomografia, ele me receitou alguns medicamentos e preparou minha baixa no hospital, caso a situação piorasse”, relata Amilton, que trabalha em um posto de gasolina em Sapiranga.

Dali em diante, ele conta que melhorou dos sintomas mais graves. “Foi uma recuperação muito lenta, fiquei 28 dias afastado do serviço. 60% do meu pulmão ficou comprometido na época. Hoje, observo que minha visão ficou prejudicada e meu raciocínio está mais lento. Meu pulmão ainda não está 100% limpo. Não sinto tosse, rouquidão. Falta de ar, se eu trabalho bastante, sinto. Para falar, se eu me empolgar e conversar bastante, eu sinto falta de ar também”, explica.

Mas as sequelas causadas pela Covid-19 não afetam somente o seu Amilton. Conforme o médico plantonista, César Petisco, diversos pacientes retornam ao pronto atendimento após a infecção pelo vírus, com sintomas que vão desde mal-estar até falta de ar.

Virologista explica

A virologista e coordenadora do mestrado em Virologia da Universidade Feevale, Juliane Fleck, explica que, quando o vírus infecta uma célula, ele vai utilizar todo o sistema da célula para poder fazer sua replicação. “O Sars-CoV-2, quando consegue formar suas partículas virais, vai romper a célula para ser eliminado. Esse processo da própria infecção viral na célula causa danos ao tecido, ao órgão, pelo dano celular causado, que vai fazer com que a gente tenha diferentes manifestações clínicas. Além disso, essa infecção vai estimular o organismo a responder. Teremos diferentes células que serão recrutadas para fazer a defesa. Nessas vias, temos primeiro uma reação inflamatória bastante exacerbada, e essa inflamação pode causar lesão também nos tecidos e órgãos”, detalha.

“Único tratamento precoce é não pegar”

Entrevista com o médico e plantonista nas cidades de Parobé, Três Coroas e Igrejinha, César Petisco.

Jornal Repercussão: Entre os pacientes que se recuperam da Covid-19, quais as principais sequelas observadas?
César Petisco:
Depende muito de quão grave foram os sintomas da Covid. De uma maneira geral, entre os pacientes que tiveram Covid leve, muitos retornam com queixa de alteração de olfato, paladar. Alguns têm sintomas inespecíficos, como mal-estar e náuseas, alteração do trânsito intestinal, fraquezas, dores musculares, dores de cabeça. Pacientes que até então não tinham diagnóstico acabam tendo alteração de pressão arterial e glicose no sangue. Já dos pacientes que tiveram a pneumonia, que foram hospitalizados, a principal queixa no retorno é a falta de ar. Eles não conseguem retornar plenamente às suas atividades, e acabam precisando de acompanhamento com pneumologista ou até mesmo clínico geral para fazer uma melhora da função respiratória.

Jornal Repercussão: Há alguma forma de evitar que o paciente tenha problemas mais sérios após a recuperação?
César Petisco: Os estudos mostram, e não foram poucos, que não há medicação eficaz para evitar a evolução da doença para o pior. O que eu oriento sempre, quando o paciente faz o diagnóstico da Covid e está com sintomas leves, é manter a calma. A grande maioria evolui bem, principalmente se não tiver doenças pré-existentes, ou idade elevada. A grande preocupação deve ser não transmitir o vírus.

Os estudos mostram, e não foram poucos, que não há medicação eficaz para evitar a evolução da doença para o pior. O que eu oriento sempre, quando o paciente faz o diagnóstico da Covid e está com sintomas leves, é manter a calma.

Jornal Repercussão: Quais são os principais problemas causados no pulmão/respiração de quem é contaminado pela Covid-19?
César Petisco: Felizmente, a maioria dos pacientes não evolui para um quadro pulmonar com a Covid. Aqueles que evoluem com a pneumonia viral, o que observamos na prática do pronto atendimento, e os estudos têm mostrado isso, é que entre o 7º e 10º dia de sintomas ocorre uma tempestade inflamatória, de citocinas, falando tecnicamente, que esses pacientes inflamam, os alvéolos pulmonares acumulam líquido, pode causar edema no pulmão, e isso é muito ruim, atrapalha a troca de oxigênio do pulmão para o sangue. Isso acaba em um quadro muitas vezes de hipoxemia silenciosa, em que o paciente chega com leve tosse, em um quadro estável, e, quando verificamos a oximetria, o paciente apresenta nível baixo de oxigênio. Isso é o próprio sistema imune exacerbado que acaba inflamando o pulmão, além da própria lesão do vírus.

Jornal Repercussão: Outros órgãos podem ser afetados? Quais e como?
César Petisco: Temos visto pacientes hospitalizados que vão à UTI com os sistemas nervosos central e periférico atacados, desde quadros mais leves de desorientação, perda de memória, fraqueza muscular, até quadros mais graves, com AVC, isquemia ou hemorragia. Precisamos de mais tempo de doença e estudos para analisar outras sequelas neurológicas. Há alguns pacientes com síndromes raras, já atendi pacientes com síndrome de Miller Fisher (em que o sistema imunológico passa a atacar os nervos que fazem parte do sistema nervoso central, causando severos sintomas no paciente, como falta de reflexos e forte fraqueza muscular). Há muita coisa a ser descoberta. Também pode atacar o coração, causando arritmias, síndrome coronarianas, vemos pacientes que não tiveram Covid grave e acabam infartando, visto que a Covid é uma doença que é trombogênica, facilitando a formação de trombos (coagulação do sangue). Pode ocorrer também lesão renal, de forma parecida com o que ocorre no pulmão, com tempestade inflamatória, principalmente quando o paciente precisa de terapia intensiva. Alguns hospitais mostraram que até 50% dos pacientes que precisavam ser intubados, evoluíram para hemodiálise. Devido à tempestade inflamatória, que ataca diretamente os rins, quando o paciente evolui para um quadro de sepse ou uso de medicação nefrotóxicas, que são necessárias para manter o paciente vivo, por ser uma doença que é multissistêmica, acaba prejudicando muito a saúde dos rins. Os hospitais tiveram que se adaptar muito rapidamente, do jeito que dava, para dar o suporte de hemodiálise para salvar o máximo de vidas possíveis.

Nós, profissionais da saúde, que trabalhamos dentro dos hospitais, principalmente nas UTIs, quando temos que dar uma notícia para um familiar, vemos no rosto de cada um o arrependimento. Tivemos muitos relatos de que não acreditavam na doença, ou que era exagero da mídia.

Jornal Repercussão: Além do aumento do contágio entre as pessoas, há alguma outra explicação para o aumento das hospitalizações neste momento da pandemia? Tem relação com estas sequelas e sintomas pós-infecção?
César Petisco: O que observamos em relação ao início da pandemia com o momento atual, tem relação com a nova cepa, da variante P.1 de Manaus. Mas tem estudos que mostram que esta não é uma cepa mais agressiva, mas na prática ocorreram mais hospitalizações. Pode ter sido, sim, e é o que eu acredito nesse primeiro momento, que as pessoas não se cuidaram. Parece que não existe a doença. E quando eu falo isso não é em relação a quem sai para o trabalho. As pessoas estão aglomeradas em praias, em festinhas, em baladas, em reuniões de família, recebendo familiares de longe, viajando por turismo. A grande questão da transmissão é aglomeração, e parece que o brasileiro continua fingindo que nada está acontecendo. Mas, nós, profissionais da saúde, que trabalhamos dentro dos hospitais, principalmente nas UTIs, quando temos que dar uma notícia para um familiar, vemos no rosto de cada um o arrependimento. Tivemos muitos relatos de que não acreditavam na doença, ou que era exagero da mídia. Acredito que o aumento das hospitalizações é justamente pelo aumento da contaminação, por descuido da população. Principalmente os mais jovens, que aglomeram e levam aos familiares. Foi visto que, inclusive, a faixa etária das hospitalizações, que no início era idosa, agora é bem mais jovem. Estou com um paciente de 29 anos intubado na UTI, que não tem comorbidade nenhuma. Não há tratamento precoce. O tratamento precoce que existe é não pegar, evitar aglomerações, usar máscara, respeitar todas as medidas que estão sendo divulgadas desde o início e que, infelizmente, uma parcela da população, de forma egoísta, continua ignorando.