A vida de um árbitro após o apito final

Aos 70 anos de idade, ele ainda lembra com carinho dos tempos em que fez do apito o seu instrumento de trabalho. Hoje, já com os cabelos brancos, tem a certeza de que foi exemplo em uma profissão sempre muito contestada.
Os mais “vividos” do futebol e que acompanhavam o esporte nos anos 60, 70 e 80, devem lembrar dele. 
Roque José Gallas, o juiz que apitou o jogo de inauguração do Estádio Beira-Rio (Porto Alegre), em 1969, esteve visitando familiares em Sapiranga no último domingo (4) e concedeu uma entrevista exclusiva ao Jornal Repercussão.
Com uma bagagem de 18 campeonatos brasileiros e muitos estaduais nas costas, Gallas recordou momentos marcantes da carreira e disse ser um homem de sorte. “Apitei os jogos dos times marcantes dos anos 70. O Cruzeiro, de Tostão, o Flamengo, de Zico, o Inter, o São Paulo, o forte Guarani de Campinas. Corri ao lado dos maiores nomes da história do futebol brasileiro e mundial, inclusive o Pelé”.
Jornal Repercussão – Tentou ser jogador de futebol antes de ser juiz ou decidiu pegar o apito de primeira?
Roque – (risos). Sim. Fui jogador do Aimoré (São Leopoldo). Eu tinha uns 20 anos e me machuquei. Então, peguei o apito. Mas, na verdade, a vontade de ser árbitro vem lá de trás, quando eu era bem pequeno. Meu tio era juiz e eu achava o máximo a roupa branca que os árbitros utilizavam na época. Com 22 anos, após escutar na Rádio Difusora que ia ter um curso para árbitros, decidi apostar na carreira. Fui um dos selecionados ao final da preparação. Eu era o mais novo da turma. Comecei apitando jogos do amador, inclusive em Sapiranga e Campo Bom. Com 24 anos, em 1968, tive o primeiro grande teste: Grêmio contra São José.  
Jornal Repercussão – Como foi convidado para ser o juiz da inauguração do Beira-Rio em 1969?
Roque – Era para ser o famoso Agomar Martins. Daí deu uma encrenca, pois o Inter não queria ele. Tinham um atrito por ele ter dado pênalti em um Gre-nal, que não teria sido. Eles queriam um árbitro da nova safra e fui o escolhido. Esse jogo marcou minha carreira, pois eu era desconhecido no Brasil. Após o jogo, todo mundo elogiou o meu trabalho, até o técnico do Benfica (tive adversário, que perdeu para o Inter por 2 a 1 na ocasião). No ano seguinte eu já estava apitando o campeonato brasileiro, competição essa que fui juiz até 1986.
Jornal Repercussão – Roque Gallas era um juiz carrancudo ou descontraído? 
Roque – Nunca tratei um jogador pelo nome. Sempre me referi à eles como “sua senhoria”. O mesmo respeito eu exigia de forma recíproca deles. Eu fui duas pessoas: o Gallas árbitro e o Roque cidadão. Sempre gostei de fazer amizades e fui divertido, mas dentro de campo o juiz é o aplicador da lei do jogo. A lei do jogo de futebol tem 17 regras, mas eu digo que existe uma 18ª: o bom senso. O árbitro que usa o bom senso sempre acerta, pois sabe a hora de ser enérgico ou não. O objetivo é terminar o jogo com 22 jogadores em campo. Nunca sentei em uma mesa para tomar cerveja com jogadores, mas fiz amizades com grandes craques, como Falcão, Dorinho, Sérgio Lopes, Aírton e Renato Portaluppi.
Jornal Repercussão – Qual foi o jogo mais difícil que apitou na carreira? 
Roque – Guarani-SP contra Vasco, em 1983. O grande time do Guarani tinha Capitão, Careca, entre outros. O jogo fazia parte da semifinal do campeonato brasileiro daquele ano. A partida teve um ambiente político criado extracampo entre as federações de Rio de Janeiro e São Paulo. No final, o Vasco venceu por 1 a 0, mesmo com um jogador a menos.
Outro jogo que recordo é Flamengo x Corinthians, no Maracanã lotado com 135 mil pessoas. Era muita gente. Quando a torcida começava a gritar, quem estava no campo sentia meio que uma “onda d’ água” no corpo. Quando o Flamengo fez o segundo gol cheguei a passar mal e fiquei tonto. Fingi que fui levar minha correntinha para o auxiliar, para poder ganhar um tempo e me recuperar. Lembro que jogadores do Corinthians estavam atônitos. Corriam contra a própria goleira. O Flamengo meteu cinco naquele dia. Aquilo ficou marcado. 
Jornal Repercussão – E em Gre-Nal, já teve alguma situação atípica nos jogos que você comandou? 
Roque – Ao todo, apitei oito grenais. Sinceramente, não me lembro o resultado destes jogos. O que me recordo é que expulsei o Batista, tanto quando ele jogava no Inter, como no Grêmio também.  Em dois destes clássicos que apitei, ocorreram situações polêmicas, do tipo “a bola entrou ou não entrou”. Mas tínhamos auxiliares muito bons na época.
Jornal Repercussão – Na sua opinião, o futebol de hoje em dia mudou contra antigamente em quais aspectos? 
Roque – Primeiramente, o torcedor do passado era muito mais fanático, mas nem por isso dava mais briga. O policiamento era mais forte. Segundo, que vejo muita gente dizendo que não vai mais em estádios porque o jogador não quer mais saber qual a camiseta que ele veste, mas sim, só se interessa no quanto está ganhando. O futebol perdeu o brilho. Naquele tempo os jogadores recebiam salários bons, mas nem perto do que é atualmente.