Videogames tem culpa pelo que aconteceu em Suzano (SP)?

País – Recentemente alunos e funcionários de uma escola de Suzano (SP) foram vítimas de uma ataque orquestrado por dois ex-alunos da instituição. O ato deixou vários mortos e feridos.

No crime foi utilizado uma arma de fogo, machadinhas, bestas, e garrafas que se assemelhavam a coquetéis-molotovs.

Após o ocorrido, reportagens fizeram correlações do crime ao fato dos assassinos jogarem um jogo denominado CS:GO, culpando, assim, de certa maneira, os jogos. Outras matérias, colocavam em voga o tema da liberação de armas no país, levando a discussão para o campo político.

Ambos os pontos tentavam elencar um culpado, mas para entender um pouco sobre o assunto, e descobrir se os jogos de videogame teriam relação com o crime, o Jornal Repercussão conversou com a Psicóloga Daniela Fonseca Galant, do Centro Médico de Sapiranga, que atua também no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Prefeitura de Sapiranga, e que possui consultório de psicologia em Campo Bom. Além disso, também ouvimos a opinião do Professor (Mestre) do Curso de Jogos e Animação da Universidade Feevale, Guilherme Theisen Schneider.

De acordo com ambos, o tema é muito mais complexo do que o que vem sendo colocado até então por diversos jornais do país, e merece ser discutido com atenção para que a culpa não recaia sobre um único ponto.

Para a psicologa Daniela, vivemos em uma sociedade de trabalhadores exaustivos que pouco tem tempo para qualquer coisa, e no caso dos pais, isto pode ser prejudicial para a criança, que necessita de atenção, carinho e dedicação para se sentir amada e desenvolver sentimentos como empatia e amor ao próximo. Para a psicologa, eleger os jogos como os culpados, ou únicos culpados pelo crime em Suzano (SP), é uma maneira muito superficial de analisar o caso.

Para o professor Guilherme, os jogos são a mídia mais interativa existente, pois conseguem fazer com que o jogador se sinta verdadeiramente parte de algo, contribuindo para um objetivo final, e criam um ambiente de aceitação. Ele afirma ainda que os jogos não têm culpa pelo que ocorreu em Suzano (SP), mas é sempre necessário que os pais observem a classificação indicativa dos conteúdos consumidos pelos filhos, de modo a não afetar o desenvolvimento cognitivo das crianças.

Abaixo você confere as ponderações completas de ambos os profissionais.

Psicologa avalia influência dos games

Para a psicóloga Daniela Galant, o crime ocorrido em Suzano (SP) é muito mais complexo, e por como culpado os jogos de videogame é uma forma muito simples de avaliar a situação.

Daniela Fonseca Galant, Psicóloga do Centro Médico de Sapiranga, atua também no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Prefeitura de Sapiranga, e em consultório de psicologia particular em Campo Bom

”Situações como essa causam impacto em todos, que ficam se questionando as causas que levam a isso. A tendência das pessoas é tentar fazer uma reflexão mais superficial da situação, por exemplo se os rapazes jogavam videogame, a culpa é do videogame, ou está em voga o discurso de liberação de armas, então tem a ver com isso. Essa é uma situação muito mais complexa e exige compreensão e entendimento que vai além das causas que as pessoas tentam encontrar de forma imediata. Na verdade, o furo é bem mais embaixo, pois se fosse assim, todos que jogassem videogame estariam perdendo o controle. Pensar que a participação nos jogos violentos é a principal causa de uma reação e comportamento como essa é uma forma muito simplista de pensamento. Temos que refletir muito além, temos que olhar para outro lado que é a questão do cuidado, que começa dentro da estrutura familiar. Não quer dizer que os jogos não possam ter algum tipo de influência negativa, mas para que ele chegue a trazer uma consequência negativa, precisa encontrar uma pessoa já desestruturada. O que faz as pessoas, crianças e adolescentes mergulharem na própria tecnologia e nos jogos, é exatamente a ausência de pessoas que possam oferecer outro tipo de contato. Muitas vezes os pais introduzem isso para distrair a criança”.

A tecnologia introduzida pelos pais

Entrando mais profundamente no assunto, a psicóloga Daniela Galant afirma que os pais introduzem a tecnologia para entreterem os filhos, para que assim possam realizar outras tarefas, até em momentos onde isso não deve ser realizado. “Muitas vezes os pais fazem isso pois precisam entreter a criança com uma coisa para que eles possam fazer outra, ou seja, os próprios pais introduzem a tecnologia na vida das crianças, o videozinho, no desenho, e depois nos jogos. Em algum momento é interessante a criança se envolver neste tipo de atividade, mas como o adulto acaba não oferecendo outras atividades prazerosas para a criança, como por exemplo sentar no chão para brincar junto, desenhar junto, contar uma historinha, a criança vai se sentindo desassistida. E onde ela vai encontrar contato, se sentir entendido, na internet! Com isso entendemos por que as crianças têm necessidade de ficar conversando nos grupos de WhatsApp, em chats, pois ali na internet se abre um espaço em que a criança e o adolescente vão mergulhando pois estão carentes de atenção, que seria a atenção que vem do contato humano, do convívio frente a frente”, destaca Daniela.

Falta de atenção gera falta de empatia

A psicologa explica que exagerar nas coisas pode não ser saudável, mas que o prolema maior está na falta de atenção que começa em casa. “Tudo em exagero faz mal, até a ingestão de água, então o uso da tecnologia e dos jogos também precisam ser cuidados. Claro que não adianta abolir isso, pois já faz parte das nossas vidas, mas a questão é equilibrar a utilização. O grande problema dos adolescentes hoje é a falta de atenção, do cuidado, que começa em casa. Não estamos falando que é uma questão apenas social, que ocorre apenas em famílias de baixa renda, não é isso, o problema é maior e se enquadra em qualquer nível social. As pessoas estão se sentindo sozinhas, e este sentimento de solidão é como uma grande epidemia atualmente. As pessoas estão se sentindo sozinhas dentro de suas próprias casas”, avalia Daniela, que continua. “As privações, a falta de atenção começa começa quando a pessoa ainda é bebê, na ausência do outro, da mãe, dos cuidados com a criança. Essas coisas vão fazendo com que a criança acabe não desenvolvendo a capacidade de se colocar no lugar do outro. A falta de empatia, de se colocar no lugar do outro foi o que faltou nesses meninos de Suzano (SP), eles estavam se sentindo justificados para fazer o que fizeram, não importava se iriam tirar a vida de alguém se iriam machucar alguém, apenas importava o que eles estavam sentindo, importava o que eles sentiam necessidade de fazer. Isso mostra que não havia consideração pelas outras pessoas”, pontua a psicóloga.

Situação avançada de abandono

Daniela segue em sua análise do caso, e pondera sobre o fato dos jovens já estarem em uma situação avançada de um possível abandono, onde as tentativas de ajuda poderiam não surtir mais efeito. “Eles tinham outras formas de pedir ajuda, se eles estavam se sentindo prejudicados, ele poderiam ter reivindicado isso de outras formas. Possivelmente essas pessoas traziam um sentimento de abandono com eles, e chega em um determinado momento, dependendo do grau de abandono que esse rapazes tiveram na infância, ou ao longo da vida, que qualquer tentativa de ajuda oferecida já não adianta mais, o cérebro já está tão deturpado, destorcido, destruído em sua capacidade de amar, de respeitar o outro, de ter consideração pelo outro, que qualquer tentativa de ajuda já não surti efeito”, disse Daniela Galant.

Reflexão mais séria é necessária

Daniela explica que é necessário uma reflexão mais aprofundada sobre a situação ocorrida em Suzano, e que é necessário elaborar táticas para prevenir este tipo de reação calamitosa desde a infância, através de cuidado e atenção com as crianças. “Esse tipo de situação exige uma reflexão muito séria, é necessário começar a pensar em como ajudar as nossas crianças a serem melhor cuidadas, desde o início da vida. Não adianta ficar discutindo só a tecnologia, nós temos que alertar que a situação é mais complexa. A questão que precisa ser debatida é justamente o estilo de vida das pessoas. As pessoas precisam saber saber que quando optam por um estilo de vida mais corrido, sem tempo para olhar para os seus filhos, isso vai trazer alguma consequência”, reflete Daniela, que explica ainda que é fácil perceber está falta de atenção, que pode ocorrer até sem má fé dos pais. “Uma cena que se pode observar muito são de mães jovens, que na hora de amamentar os seus filhos, ao invés de olhar para o seu bebê, estão com o celular na mão aproveitando para se comunicar com outras pessoas. Ela pode até estar se comunicando com outras mães que amamentam, tirando dúvidas, pedindo dicas, a intenção é boa, mas aquele momento não é para estar dividindo a atenção com outras coisas, é o momento dela se concentrar no seu filho que esta mamando. Tudo já começa por aí, o bebê começa a não se sentir olhado e atendido, desde muito cedo, e isso na medida em que ele vai crescendo vai se intensificando”, define a psicóloga Daniela.

Empatia deve ser desenvolvida

A psicologa comenta ainda que a empatia não é um sentimento nato do ser humano, e que ele precisa ser aprendido. “É uma situação muito mais complexa, pois o ser humano não nasce com essa capacidade desenvolvida de ter consideração, amor ao próximo, não nascemos com isso pronto, é necessário desenvolvimento. Por exemplo, a criança pequena, com três ou quatro anos, quando quer um brinquedo ela quer e pronto, ela não quer saber se outra criança está brincando e precisa esperar ou não. Todas essas coisas precisamos ensinar, que a criança precisa esperar para brincar com o brinquedo, repeitar o espaço do outro, isso é uma construção que vai acontecendo e que leva anos, então um adolescente e um jovem que fazem isso que esses dois fizeram são a prova que não desenvolveram essa capacidade de tolerar frustrações e desenvolver esse sentimento de empatia”, finaliza a psicóloga Daniela Galant.

Professor de jogos fala sobre tema

Para o professor do Curso de Jogos Digitais e Animação da Universidade Feevale, Guilherme Schneider, os jogos não tem qualquer culpa com o trágico ocorrido, e desvios de conduta são os culpados pelos limites ultrapassados pelos dos jovens responsáveis pelos assassinatos em Suzano (SP).

Guilherme Theisen Schneider, Professor (Mestre) do Curso de Jogos e Animação da Universidade Feevale

“Os jogos não têm culpa! O jogo é uma mídia, algo interativo, antes de serem criados o acesso a esse conteúdo (violento) era o cinema ou a televisão, e já ocorriam casos como este. Não é a mídia, é sempre um comportamento, um desvio de conduta, muitas vezes uma falha na infância. A psicologia consegue articular uma avaliação sobre isso. Muitas vezes, os pais podem ser negligentes, ou muitas vezes, não trabalhar várias questões na criança, e ela acaba absorvendo e querendo ultrapassar um limite muito claro, que nenhuma outra pessoa iria ultrapassar. Não tem por que culpar os jogos que são para o entretenimento, do contrário poderiam culpar o AirSoft, em que há muito mais realismo. Não dá para confundir as coisas, é muito importante compreender que os jogos têm uma narrativa, uma interação, e porque tantas pessoas falam deles, pois eles são a mídia mais divertida, é onde a pessoa mais se sente participativa em função as outras. Quando só existia o cinema, a pessoa era simplesmente expectador, agora não, como jogador as decisões influenciam no jogo, então é possível colocar a personalidade dentro dele. É isso que algumas pessoas não entendem, se alguém tem um desvio de conduta, ele pode colocar esse desvio em pratica no jogo. A pessoa joga em um time com vários amigos e inimigos, ela pode, pelo desvio de conduta, matar todos os amigos, isso é possível no jogo, não que seja correto, mas é um espaço em que muitas podem colocar esse desvio em pratica. Por isso, as pessoas dizem que há culpa, mas a culpa está no desvio, não no jogo”

A pessoa terá mais interesse em jogos e coisas onde poderá praticar violência caso já apresente algum tipo de desvio de conduta

O Jornal Repercussão questionou ao professor de Jogos Digitais da Universidade Feevale, Guilherme Theisen Schneider, se caso um indivíduo já apresente algum distúrbio, ele estaria mais propenso a jogar videogames e consumir mídias onde pudesse praticar ou ter contato com violência, mas para Schneider, o consumo dos games está mais relacionado a questões de geração. “Pergunta interessante, a pessoa já tem uma patologia, uma questão de desvio de comportamento, não quer dizer que ela vá gostar de jogos. As pessoas mais jovens, com menos idade nasceram com os jogos em sua rotina, então não se pode mirar nisso (jogar videogame) como se fosse o culpado, na verdade eles cresceram e tiveram acesso a isso desde a sua infância, então essa é a causa de gostarem de jogos, pois é algo que cresceu com eles. Por este motivo uma pessoa de 45 ou 50 anos não joga tanto, ou nem joga, pois não cresceu dentro desse meio, já uma pessoa de 30 anos, tem possibilidade de ter crescido com os jogos, então ele já vai gostar. É muito mais uma questão de geração, de mudança em como as pessoas crescem, com o que elas brincam, tem mais a ver com isso”, define o professor.

Toda mídia conta com classificação indicativa

Guilherme foi questionado ainda se outras mídias como filmes, series, entre outras influenciariam por terem temáticas semelhantes aos games como guerras, mortes, entre outras, mas embora o professor não acredite que os videogames possam ser os responsáveis pelo ocorrido em Suzano (SP), a classificação indicativa é algo que deve ser abordado e respeitado. “Sendo um filme, seriado ou propriamente o jogo, tudo têm classificação indicativa. A classificação indicativa foi criada justamente para não interferir no processo cognitivo das pessoas. Um jogo que proponha a temática de guerra, por exemplo, impõe uma limitação de que é necessário ter mais de 16 anos para jogar, então se está vendo crianças com menos idade jogando este tipo de jogo, na realidade isso pode atrapalhar (o desenvolvimento dela), assim como ela ver um filme de guerra que é exatamente igual. A classificação indicativa serve para alertar que para esta temática ou esse tipo de ação é necessário ser mais maduro para poder consumir o conteúdo”, explica Guilherme, que continua e destaca que o cuidado dos pais é necessário. “Isso é um consumo, assim como a televisão, cinema, seriados e os próprios jogos, você está consumindo e se apropriando de informações, de conhecimento, então é bem importante que não libere para filhos menores e pessoas que não saibam reconhecer que aquela temática não é para si. Isso é papel dos pais, eu por exemplo, tenho duas filhas, e cuido muito do que elas jogam, do que elas olham no YouTube, não se pode liberar as crianças para assistirem qualquer canal ou jogar qualquer jogo, pois não é para a idade delas, há fundamentos para isso”, pontua Schneider.

Jogos são a mídia mais interativa e por isso atraem multidões

Para finalizar, o Jornal Repercussão indagou ao professor de jogos da Universidade Feevale sobre o que faz os videogames atraírem as pessoas. Para Guilherme, a mídia é a mais interativa, e auxilia no processo de aceitação de jovens e adultos. “Gosto de explicar de forma bem clara! Na verdade, o jogo, de todas as mídias, é a mais interativa, então sendo a mídia mais interativa é a que a pessoa consegue colocar a sua opinião e onde suas ações são mais levadas em conta, então isso é uma coisa que deixa as pessoas muito motivadas a jogar, pois, a partir do momento que o jogador faz alguma coisa e vence, ou faz alguma coisa e ajuda o time a vencer, isso faz com que ele consiga, efetivamente, se sentir parte de algo. Não digo sentir parte no sentido da matança, mas do objetivo de vencer aquela disputa no jogo, e isso é uma coisa muito motivante. Para quem não cresceu nessa geração, isso pode parecer meio bobo, para quem é de uma geração que antes só jogava bola e brincava na rua, havia esse mesmo sentimento, só que dentro de uma brincadeira mais inocente, jogando bola, brincando de pega-pega, esconde-esconde. Agora são colocadas situações mais complexas, onde essas crianças estão se sentindo muito valorizadas dentro deste jogo. Muitas vezes são pessoas que tem dificuldade de comunicação, e no jogo ela criam um perfil onde conseguem se reconhecer, se identificam com outras pessoas, conseguem se sentir parte de uma comunidade. Tem uma questão de aceitação muito grande destas comunidades”, finaliza.

Texto: Taylor Abreu

Foto: Reprodução site Tech Tudo – Jogo de computador CS:GO (Counter-Strike)

Nota de redação: Esta matéria apresenta a versão ampliada do texto veiculado na versão impressa do Jornal Repercussão na edição do dia 21 de março de 2019 (pg. 21). O texto apresenta todos os pontos trazidos pelos profissionais contatados para a produção desta matéria na íntegra, sem alterações das opiniões e análises realizadas sobre o tema games e sobre o ocorrido em Suzano (SP) dos profissionais consultados.