Óbitos por Covid-19 na região passa mortes na RS-239 entre 2015 e 2020

São 153 pessoas que morreram em 137 acidentes na RS-239, desde 2015 | Foto: Arquivo/JR

Por Henrique Ternus

Região – A pandemia na região dos Vales do Sinos e Paranhana continua se agravando. Nos últimos 14 dias, pelos menos 80% dos leitos de UTI adulto estão ocupados, na região de Novo Hamburgo do modelo de Distanciamento Controlado do governo estadual. Na região de Taquara, 19 dos 20 leitos de UTI estão ocupados desde a última segunda-feira (27). Além disso, o número de óbitos permanece em crescimento. No último dia 21, o estado do Rio Grande do Sul atingiu seu recorde de mortes confirmadas em 24h, em função do coronavírus, com 59 pessoas que faleceram por complicações da doença. No total, foram 1.750 famílias gaúchas enlutadas pela perda de um parente (dados da Secretaria Estadual de Saúde, até 29/07).

 

Para ajudar a elucidar ainda mais a gravidade desta situação, o Repercussão realizou um comparativo entre as mortes por acidentes de trânsito em toda a extensão da ERS-239, e os óbitos causados pelo novo coronavírus nas cidades pelas quais passa a rodovia. Entre o ano de 2015 e 2020, até o mês de maio, foram 153 falecimentos nos 137 acidentes de trânsito com morte na estrada. Já as cidades do trecho entre Estância Velha e Riozinho contabilizam 167 óbitos por coronavírus desde o início da pandemia no Brasil, em março de 2020, quando houve a confirmação do primeiro caso no país. Os dados utilizados foram os disponibilizados pelas secretarias de saúde de cada município até 29 de julho.

 

Acidentes com morte em toda a RS-239:*

Período Acidentes com morte Mortes nos acidentes
2015 25 28
2016 30 34
2017 26 31
2018 18 19
2019 26 29
2020 (até maio) 12 12
TOTAL 137 153

*Informações repassadas pelo Detran/RS | Julho 2020

Mortes por Covid-19 na região:**

Município Total de óbitos
Estância Velha 16
Novo Hamburgo 84
Campo Bom 27
Sapiranga 20
Araricá 3
Nova Hartz 1
Parobé 6
Taquara 9
Rolante 1
Riozinho 0
TOTAL 167

**Informações das secretarias municipais de saúde até 29/07.

 

Isolamento está longe do ideal

De acordo com dados analisados pela empresa In Loco, entre 19 e 25 de julho, a taxa de isolamento social no estado do Rio Grande do Sul é de 41,4%. Por aqui os números são menores: na região de Taquara, a taxa é de 39,4%, e na de Novo Hamburgo, 38,6%. Segundo a Sociedade Riograndense de Infectologia, o ideal seria atingirmos uma taxa entre 55 e 60%, no mínimo.

Buscando esclarecer as razões pelas quais ainda existe uma resistência por parte da população em aceitar a existência da doença e que medidas sanitárias e de distanciamento devem ser seguidas, a reportagem entrevistou o professor e doutor em História, Daniel Gevehr, da Faccat, e a socióloga e doutora em ciências sociais, Sueli Cabral, da Feevale. Confira abaixo as duas entrevistas na íntegra:

 

Grupo Repercussão – Por que, socialmente falando, parece ser tão difícil para que as pessoas aceitem esta nova realidade, e se adaptem às medidas de segurança necessárias para enfrentamento da pandemia, como isolamento e distanciamento social, uso de máscara e adoção de protocolos de higiene?
Sueli Cabral – Alguns colegas já disseram e eu concordo: existe fadiga da quarentena, não apenas aqui como em outros estados e países, além do que é um fenômeno, para muitos, invisível. O isolamento traz um esgotamento psicológico, que une-se a um temor de não ter como manter seu sustento.   Então muitas pessoas saem, pois necessitam sair para se manterem vivos. Contudo, há o outro lado da moeda: pessoas que são negacionistas. Que saem e não cumprem o isolamento simplesmente porque não se enxergam dentro de um coletivo, não se importam. Não é a questão do esgotamento ou fadiga psicológica. É egoísmo e falta de empatia, que, inclusive, são características humanas.

Grupo Repercussão – Por que existe esta dificuldade entre parte da população em compreender que, caso não sejam cumpridas tais medidas, haverá um crescimento no número de óbitos em função da doença? Da mesma forma que existem pessoas que insistem em utilizar celulares enquanto dirigem, em não utilizar o cinto de segurança, em não respeitar regras de trânsito, etc?
Sueli Cabral – Falando especificamente da Covid-19, é importante que tenhamos em mente que há um grande medo instituído por algo que é invisível, e que gera diferentes reações, algumas inclusive irracionais. Vivemos num momento em que o tema das conversas, em sua grande maioria, é a pandemia, as relações se estabelecem através da discussão deste único tema, isso cansa e acabamos criando subterfúgios para nos libertar. O não cumprimento de regras do isolamento social está presente no mundo inteiro, em alguns locais em maior grau e outros menores. Mas está presente. As regras aprisionam, nos tiram uma suposta liberdade. Não somos tão empáticos quanto pensamos. Cabe, no entanto, ressaltar que o brasileiro num aspecto geral não é forte seguidor de normas. A noção do “eu tenho que levar vantagem de tudo”, “sabem com quem está falando?”, se consolidou como um “jeitinho brasileiro”.

Grupo Repercussão – De que forma os governantes, desde prefeitos até presidente, poderiam e deveriam abordar esta situação, para que houvesse adesão e entendimento por parte da população da realidade da situação (levando em conta também que existe um crescimento, nos últimos anos, na quantidade de pessoas e teorias negacionistas, cujas ideias seguem no caminho contrário do que vem sendo divulgado pelos veículos de comunicação, pesquisadores, profissionais da saúde e comunidade científica)?
Sueli Cabral – Ressalto: vários governos estaduais e municipais estão fazendo o possível, possuem condutas que, dentro da realidade atual, estão no limite do possível. Poderia ser melhor? Sim, sempre poderíamos melhorar, e sempre poderíamos estar melhor. Contudo os próprios governantes necessitam da ajuda da população. Nosso problema mais expressivo é o Governo Federal, que contribui de forma assídua com os negacionistas, alimenta a população com falsas notícias e potencializa a polarização. O resultado é o aumento da má conduta sobre o distanciamento social e as medidas de higiene.

 

Grupo Repercussão – Historicamente, em relação à pandemia, existe algum precedente de alguma situação parecida? Constantemente, observamos comparações com a Gripe Espanhola, de 1918, mas qual de fato é a relação entre as duas situações? Qual é a dimensão dessa comparação? E ainda, por que parece ser tão difícil para que as pessoas aceitem esta nova realidade, e se adaptem às medidas de segurança necessárias para enfrentamento da pandemia?
Daniel Gevehr – Todo esse discurso negacionista da doença era evidente lá em 1918 (durante a pandemia da gripe espanhola). O que é assustador, do ponto de vista da história da humanidade, é nos percebermos que, mesmo com todo o avanço da ciência da pesquisa no mundo, e também no Brasil, todo trabalho exaustivo que as universidades e os centros de pesquisa têm realizado nas pesquisas relacionadas à formulação de uma vacina (que acreditamos estarmos aí bastante próximos), mesmo diante de todo esse cenário da ciência contemporânea, a gente tem um grupo enorme de negacionistas, que ainda defendem e ainda difundem o discurso de que, afinal de contas, se trata de uma “gripezinha”, e que “e daí se morre gente? Afinal de contas todos os dias morrem pessoas, apenas agora está morrendo um pouco mais”. 

Outro dado que eu acho importante destacar é que, ao contrário do que a gente pode pensar, esse discurso negacionista não parte apenas das camadas sociais menos esclarecidas ou com menos informação. Ele também é difundido por pessoas que, teoricamente, têm condições sociais e culturais mais favorecidas, e que reproduzem esse modelo do negacionismo. Fazem, inclusive, apontamentos e comentários do tipo “a igreja tal pode curar”, “determinadas ervas podem curar”, ou “determinados produtos”, que entra aí a polêmica da cloroquina. A Fiocruz, que é o maior centro de pesquisas relacionadas ao Covid-19 aqui no Brasil, tem afirmado categoricamente que a cloroquina não produz nenhum efeito benéfico no tratamento da doença. Mas verificamos prefeituras da região que distribuem o medicamento gratuitamente, já que o Ministério da Saúde comprou e produziu uma quantidade enorme do remédio, e agora precisa distribuir entre a população, inclusive sabendo dos possíveis efeitos colaterais que o produto pode provocar nas pessoas. Estamos em 2020, pleno século XXI, a ciência tem papel fundamental, e essa ciência é negada e discutida por parte daqueles que não têm nenhum conhecimento de causa, mas colocam a ciência no banco dos réus.

Grupo Repercussão – Por que existe esta dificuldade entre parte da população em compreender que, caso não sejam cumpridas tais medidas, haverá um crescimento no número de óbitos em função da doença? Da mesma forma que existem pessoas que insistem em utilizar celulares enquanto dirigem, em não utilizar o cinto de segurança, em não respeitar regras de trânsito, etc?
Daniel Gevehr – Como eu já falei anteriormente, todo esse discurso negacionista se compara, por exemplo, àqueles negacionistas que dizem, por exemplo: “eu uso o celular, eu falo no celular, eu mando mensagem que eu escrevo no celular enquanto eu dirijo, porque eu tenho a destreza suficiente pra poder dirigir e usar meu celular”. Os dados estatísticos estão aí para provar, de que boa parte dos acidentes de trânsito no Brasil, especialmente nas áreas urbanas dos perímetros urbanos, estão diretamente relacionados ao uso indevido do celular na direção. Como também me recordo muito bem de que, até 20 anos atrás, as pessoas não usavam cinto de segurança no carro, muitos carros não tinham sequer cinto de segurança, e hoje usar o cinto, pelo menos no meu cotidiano, é algo fundamental. Quer dizer, você entra no carro e a primeira coisa que você faz é colocar o cinto de segurança, que também tem provado que salva vidas em acidentes.

Nós vemos, por exemplo, nas nossas cidades aqui, pessoas que não respeitam os sinais verde e vermelho no semáforos, nós vemos pessoas que não ligam o pisca quando vão dobrar à direita ou à esquerda, eu vejo pessoas dirigindo com latas de cerveja na mão, ou seja, ingerido bebida alcoólica, crianças pequenas no banco da frente. Quer dizer, há toda uma prática social que reproduz todo esse negacionismo de toda uma pauta defendida pelos órgãos de trânsito, que determinam e cobram a utilização de equipamentos de segurança no carro, ou seja, o cinto de segurança, não dirigir alcoolizado, não dirigir usando o telefone celular, etc. São atitudes que todos os cidadãos deveriam ter, para que nós tivéssemos uma sociedade menos violenta, com menos acidentes e, consequentemente, com menos feridos. Com isso, nós lutaríamos menos nos hospitais, nós teríamos uma taxa de mortalidade no trânsito muito menor do que essa que nós temos, ou seja, é necessário sempre olhar essa perspectiva do que está a nossa volta.

Grupo Repercussão – De que forma os governantes, desde prefeitos até presidente, poderiam/deveriam abordar esta situação, para que houvesse adesão e entendimento por parte da população da realidade da situação (levando em conta também que existe um crescimento, nos últimos anos, na quantidade de pessoas e teorias negacionistas, cujas ideias seguem no caminho contrário do que vem sendo divulgado pelos veículos de comunicação, pesquisadores, profissionais da saúde e comunidade científica)?
Daniel Gevehr – Em relação à postura dos nossos dirigentes públicos, e aqui eu me refiro especialmente à figura do presidente da República, na esfera federal, do governador do estado, na esfera estadual, e dos prefeitos, na esfera municipal, e até, porque não, dizer também no legislativo, com o papel e o exemplo – ou o mau exemplo -, muitas vezes dado pelos determinados vereadores aqui da nossa região. Acho que essa é uma questão muito séria, porque felizmente ou infelizmente não depende do ponto de vista que a gente analisa. Os exemplos que são seguidos por grande parte da população se espelha nos governantes, porque os governantes são aqueles sujeitos que foram eleitos democraticamente pelo voto, e, por consequência disso, muitas pessoas, a maioria delas pelo menos, aqui está tendo, seja o presidente, o governador, ou prefeito, ou seu vereador, como um exemplo a ser seguido. Afinal de contas, se o presidente nega a ciência e diz que determinadas condutas são possíveis e outras não, essas pessoas acabam reproduzindo esse modelo do governante. E aí nós temos todo o embate ideológico por trás, porque se eu sou do lado A ou do lado B, e o meu presidente, o meu governador, o meu prefeito é do mesmo lado, a pessoa reproduz o modelo que ele pratica. Já se eu sou do lado oposto, eu passo a criticar as atitudes daquele grupo.

Ou seja, nós deveríamos ter uma consciência da política de cidadão efetivo, de saber distinguir as ideologias políticas de conhecimento científico. Infelizmente, a gente tem visto isso no Brasil. Os Estados Unidos são outro exemplo claro nesse momento, no qual os dirigentes não são exemplos, ou melhor, são maus exemplos, porque negam a ciência, e aparecem na televisão ou nas redes sociais fazendo tudo ao contrário daquilo que as pessoas do campo da ciência, da medicina e da saúde defendem. Outro exemplo claro é que há muitas vezes a discordância dentro das mesmas esferas, nas quais a gente vê, por exemplo, determinados médicos da rede pública de saúde dos nossos municípios explicando que a cloroquina não tem nenhum efeito, e por outro lado você vê as Secretarias de Saúde distribuindo a cloroquina para os pacientes. Quer dizer, toda essa questão precisa ser muito bem discutida pela sociedade, porque se não o cidadão fica efetivamente desnorteado sem saber para que lado que ele vai.